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EXCERTOS
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"Ensinar dramaturgia é aprender a perceber o homem, a entender o sentido da vida." |
(Shohei Imamura [87])
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"Marc escrevia com rapidez, respeitava prazos... Tudo era perfeito, com uma única condição: deixar a ambição de lado. (...) Alguns produziam frigideiras, tratores ou pranchas de windsurfe; a televisão produzia imagens, historias em imagens e ele tinha seu lugar neste processo, um lugar confortável que ele guardaria sempre, desde que ele não se considerasse um artista." |
(Haute-Pierre)
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Sobre alguns encontros determinantes
Esta obra é fruto de encontros bastante diferentes,
e sem os quais ela nunca teria existido. Na origem de tudo, Frantisek
Daniel, meu professor de escritura de roteiro entre 1983 e 1985 que,
nessa época, era codiretor, junto com Milos Forman, da escola
de cinema da Columbia University, em Nova York, onde obtive mestrado
em roteiro e mise en scène. Frantisek era considerado, nos EUA
e em alguns países europeus, um dos grandes especialistas do
ensino de roteiro. De origem tcheca, ele havia lecionado na Escola de
Cinema de Praga (FAMU), antes de emigrar para os Estados Unidos.
Em 1983, Frantisek Daniel aconselhou-nos enfaticamente a leitura da
obra de Edward Mabley Dramatic construction [110], publicada
no começo da década de 1970. Na época, o livro
estava esgotado e era dificílimo encontrá-lo. Uma única
cópia existia na biblioteca da universidade, o que me permitiu
descobri-lo. É obra excepcional. Hoje, e graças a internet,
é possível conhecer seu conteúdo, ainda que em
inglês, já que ele nunca foi traduzido.
Entre outras coisas, Edward Mabley recomenda, por sua vez, vários
títulos, entre os quais um ensaio brilhante e infelizmente inédito
na França: Tragedy and comedy [98] de Walter Kerr,
que também é autor de The silent clowns [97],
dedicado aos cômicos do cinema mudo, outro livro extraordinário.
Para completar a bibliografia que me ajudou a compreender o que seja
dramaturgia, devo citar mais duas obras, legitimamente bem reputadas:
as Entrevistas Hitchcock Truffaut [78] e Psicanálise
dos contos de fadas [17].
Bruno Bettelheim, Frantisek Daniel, Alfred Hitchcock, Walter Kerr e
Edward Mabley constituíram a base para minha reflexão
sobre dramaturgia. Em seguida, duas atividades permitiram-me afinar
e explorar mais profundamente essa reflexão. A de roteirista
profissional em primeiro lugar e, em segundo, a de pedagogo, uma vez
que criei e coordenei, entre 1987 e 1997, diversas oficinas de escritura
dramática. Essa prática, por sua vez, levou-me a outras
duas atividades: script doctor e conferencista em seminários
sobre dramaturgia. Os dois primeiros dirigentes de instituição
que me honraram com seus convites (Françoise Villaume, do Centro
de Escrituras do Espetáculo de Villeneuve-les-Avignon, e Jacqueline
Pierreux, da RTBF, em Bruxelas) e os alunos que frequentaram minhas
oficinas contribuíram igualmente para o nascimento deste livro.
Enfim, devo muito a minha mulher, Catherine, e a meus filhos, Baptiste,
Aurélien, Valentin e Clémentine, que tantas coisas me
ensinaram sobre a vida e, consequentemente, sobre a dramaturgia. Afinal,
e como Imamura [87], creio que compreender uma inclui compreender a
outra. A todos, o meu obrigado.
A arte da narrativa
Nas edições francesas anteriores, o subtítulo do
livro era "Os mecanismos narrativos". Acabei por me dar conta
de que a narrativa é temida ou menosprezada por muitos artistas,
quer sejam eles músicos, escritores, ilustradores ou cineastas,
que alegam, entre outras maledicências, que a arte é o
que sobra de uma disciplina artística da qual tiramos a historia.
Ou ainda, que consideram a narrativa um pretexto, como um tipo de trampolim
para exercer sua arte. Um trampolim trivial e utilitário, sem
a menor dimensão artística.
Divagações como essas podem me fazer sorrir. Mas é
importante restabelecer a evidência de que a narrativa é
sim uma arte, e das mais potentes, ancestrais e necessárias ao
desenvolvimento humano (cf. páginas 10-12). Contar histórias
exige competências e criatividade e receber histórias permite
ao ser Humano viver emoções, cultivar o belo, crescer
e compartilhar experiências. Refutar a nossa necessidade da narrativa
não deveria interessar a ninguém.
Primeiro longa-metragem como diretor
Entre a segunda (1997) e a terceira (2004) edição deste
livro, algo relevante aconteceu no que se refere à minha trajetória:
escrevi e realizei meu primeiro longa-metragem: Oui, mais....
A experiência não alterou em nada minhas considerações
sobre o trabalho de roteirista, visto que não desci de um trono
acadêmico para adentrar a arena artística. Era roteirista,
dramaturgo, diretor de teatro e de curtas-metragens antes de escrever
La dramaturgie e de dirigir Oui, mais....
Contudo, gostaria de destacar, sobre a apaixonante experiência
de realizar um filme, como a passagem do texto à imagem e a encarnação
dos personagens pelos atores pode levar-me a modificar o roteiro até
o momento da mixagem do filme.
Regras e padronização
Quando La dramaturgie foi lançado
na França, em 1994, a questão da existência de regras
(cf. nota de rodapé) e do ensino do roteiro ainda era
pertinente - isso justifica a inclusão, na introdução,
de uma passagem sobre o aprendizado das regras. Atualmente, porém,
idéias como essas não são praticamente mais questionáveis.
Ainda assim, preferi manter o texto original, com a intenção
de colocar os pontos nos iii. O leitor iniciado poderá saltar
as páginas 15-20.
Isso dito, a recusa das regras da narrativa foi substituída por
outra forma de resistência: hoje, nos queixamos da uniformização
das obras. Subentende-se: as regras existem, admitimos, mas são
nefastas por conduzir a uma lamentável estandardização.
Somos forçados a reconhecer que certa uniformização
se faz sentir, sobretudo proveniente de Hollywood, mas ela não
se liga à importância crescente atribuída ao roteiro
nos últimos 25 anos. Se existe uniformização, ela
é devida à falta de audácia dos dirigentes, assim
como à fraca criatividade de alguns autores. Certo é que,
em se considerando a construção narrativa, podemos obter
obras tão diversas quanto A esquiva, A festa
(1998), Dançar: despertar de um desejo,
Terra de ninguém, Onde é a casa do
amigo?, As vidas dos outros ou A vida é
bela. Seria justo dizer que esses filmes formam um monumento
à uniformidade?
Nota de rodapé. Robert McKee [115] e outros teóricos
preferem falar em princípios, posto que as regras seriam feitas
para ser obedecidas, enquanto os princípios fariam referência
ao que funciona. Aquelas imobilizariam, estes estimulariam. Não
tenho medo da palavra "regra" e prefiro dar nomes aos bois;
sobretudo se, como veremos na introdução (página
15), a palavra "regra" pode possuir vários sentidos.
As máscaras da resistência
Aqueles que aceitam a existência de regras e até concordam
com o fato de que elas podem dar origem a grandes obras tendem às
vezes a recorrer a uma fórmula clássica: "As regras
são muito boas, mas devemos saber delas nos liberar para podermos
encontrar nosso verdadeiro tom autoral". A ambição
é bastante louvável, desde que o propósito seja
libertar-se das regras que dominamos. Quando, porém, nos contentamos
em conhecê-las em teoria e, chegada a hora da prática,
esnobá-las, retornamos, mais uma vez, à prisão
da resistência. Enquanto os protagonistas do teatro, do cinema
e da história em quadrinhos persistirem só confiando em
seus instintos para criar ou acompanhar obras dramáticas, continuarão
jogando na loteria. E, como todos sabem, na loteria, perdemos ou ganhamos
pouco com mais frequência do que ganhamos muito - atenção,
falo aqui de ganhar em integridade e em coerência artísticas,
e não em número de entradas no box office. Teremos a ocasião
de retornar à espinhosa questão das regras e de sua consciência,
em particular nas páginas 204-206.
Um espectador inocente
Muito me questionaram (e não sem uma ponta de preocupação) se é possível continuar a apreciar uma peça, um filme ou uma história em quadrinhos, a ser, enfim, um espectador inocente, após decifrar o segredo dos mecanismos da narrativa dramática. A resposta é sem dúvida que sim. Ao descobrir A vida é bela, ri, chorei e, só após ter desfrutado plenamente o filme, dei-me conta dos pagamentos formidáveis. Ao rever o fim de Luzes da cidade pela décima quinta vez, me emociono. Embora sabendo tratar-se da resolução de uma ironia dramática, eu choro. Mesma coisa quando releio o manga japonês Hareyuku sora. Não é o conhecimento das regras que corrompe a visão de uma obra dramática, mas a obrigação de comentá-la, pois ela é concebida para ser absorvida pelo coração e pelas vísceras, e não apenas pelo cérebro. Nem o autor, nem o leitor deste livro, contudo são tocados por esse problema. Por outro lado, é bem provável que o conhecimento dos mecanismos narrativos torne o espectador mais exigente, mais difícil de satisfazer. Digamos que, quando a obra "funciona", a recebemos como qualquer pessoa; quando ela não "funciona", temos a capacidade de analisar por que, percebendo mais facilmente suas falhas.
Sr. Hulot escreve seriado para TV
Nas duas primeiras edições de La dramaturgie (1994
e 1997), havia um anexo dedicado à redação para
a televisão. Nele dava alguns poucos conselhos técnicos,
já que os mecanismos narrativos são fundamentalmente os
mesmos que para teatro ou cinema. Por outro lado, eu enaltecia intensamente
o seriado. E convidava os autores a se considerar artistas e, sobretudo,
os executivos dos canais a permitirem aos autores se considerar artistas,
como se estivesse inventando a posição de sentar.
Acontece que, neste mesmo momento, em 1996 para ser exato, chegavam
às telinhas francesas duas bombas, Friends e Serviço
de urgência, seguidos por pouco de uma terceira: Ally
McBeal. Era o começo de um grande tapa na cara tomado
pelo conjunto de atores da ficção televisiva francesa,
e mesmo mundial. Desde então, esses bombardeios ocorrem, em média,
seis vezes por ano: CSI: Crime sob investigação,
Dexter, Donas de casa desesperadas, Dr.
House, A escuta, Juventude à flor
da pele, Sete palmos de terra, Os Simpsons,
Os Sopranos, 24, The worst week of
my life e muitos outros. Tivemos que nos render: a teledramaturgia
francesa era brega, conservadora, ultrapassada. Um sentimento de vergonha
começou a tomar a paisagem audiovisual francesa, a PAF.
E ainda assim, se séries americanas tivessem se contentado em
nos mostrar a que ponto estávamos artisticamente estagnados,
provavelmente continuaríamos sendo até hoje, já
que "para o artístico, não estamos nem aí!".
É uma mera preocupação filosófica. Mas quando
é no bolso que a situação se faz sentir, as consciências
acordam, como num golpe de mágica. Ora, tendo acesso ao horário
nobre da programação, elas venceram sem esforço
a disputa pela audiência.
O conjunto da PAF entendeu que se devia reagir. Em Há festa
na aldeia, o carteiro, um tipo de Sr. Hulot rural representado
por Jacques Tati, descobre impressionado os métodos de distribuição
postal utilizados nos Estados-Unidos. Ele decide então fazer
suas entregas a moda "amerrrricana". Uma série de pequenas
catástrofes se sucedem. E como o carteiro de Há
festa na aldeia, a TV francesa resolveu imitar sua concorrente
anglo-saxônica, aceitando, finalmente, o que nós, roteiristas
franceses, martelávamos há vinte anos. Primeiro, é
necessário disponibilizar muito mais meios para o posto mais
importante de uma narrativa televisiva: o roteiro. Segundo, é
necessário acabar com o esnobismo dos unitários e dos
90 minutos, o seriado sendo o formato ideal para a televisão.
Um grande homem do cinema, Alfred Hitchcock, foi um dos primeiros a
tê-lo compreendido quando começou a produzir seriados de
televisão nos anos 50. Depois dele, cineastas como David Lynch
e Steven Spielberg seguiram o mesmo princípio.
As imitações começaram então a se proliferar.
Copiamos, pura e simplesmente, adaptando seriados existentes e fazendo
remakes declarados. Também nos inspiramos sem vergonha, tentando
fazer um Anatomia de Grey à francesa, um Ally
McBeal à francesa, um Dexter à francesa.
Resultado (totalmente previsível): um sub-Anatomia de Grey,
um sub-Ally McBeal e um sub-Dexter. Montamos
ateliês de autores para escrever em grupos. O Centro Nacional
de Cinematografia lançou fundos de inovação supostamente
destinados a financiar a redação de projetos selecionados
pela sua originalidade mais do que pela capacidade de seus autores de
os desenvolver. Decidimos fazer seriados com personagens de trinta anos
para seduzir os menos de 35 anos que não assistem TV. Como se
fosse necessário estar desempregado para apreciar Ou tudo
ou nada ou estar morto para vibrar com Dead like me!
Finalmente, tomamos a iniciativa de ser audaciosos e delirantes. Enquanto
a verdadeira ruptura, a audácia do século, seria simplesmente
contar uma historia com brio - e pouco importa o assunto -, nos foi
proposto uma mulher presidente da república na França,
um anão e um transexual num episódio de sitcom, um seriado
policial com palavrões e cadáveres sanguinolentos em plano
fechado, e um monte de cenas bem quentes para apimentar o todo.
Entramos na primeira fase de colheita e é provavelmente cedo
demais para fazer um balanço da situação. Mas me
parece que os executivos da PAF não levaram a cabo um terço
das reformas. Alguns começaram a mais ou menos colocar o roteiro
no centro do dispositivo, deixando porém o roteirista a sua margem.
Marc Cherry, David Chase, Alan Ball, Matt Groening, Mark Bussell e Justin
Sbresni, Marta Kauffman e David Crane não são somente
os roteiristas do seriado que criaram, eles também são
os produtores. Eles participam dos castings, tem acesso à sala
de montagem, as vezes até dirigem um episódio ou dois.
Em duas palavras, eles são os tomadores de decisão do
seriado. E, até, os principais tomadores de decisão. Não
é uma questão de ego mas de lógica. David Chase,
autor de Os Sopranos, é um exemplo perfeito deste
sistema. Chase escreveu e dirigiu o piloto e diversos episódios,
cuidou do casting dos atores mas também do casting dos roteiristas.
Supervisionou a montagem de todo o seriado. Em suma, deixaram David
Chase se considerar artista. No final, o resultado foi um produto industrial
e uma obra de arte, tão entretenimento quanto obra de autor,
uma das mais potentes do repertório dramático contemporâneo.
Alguns dirão que Os Sopranos foi veiculado em canal
pago (HBO), menos submissos aos testes de audiência do que os
grandes canais abertos. Tomamos então o exemplo de Serviço
de urgência, transmitido num network broadcasting TV (NBC).
O raciocínio é o mesmo, é só substituir
o nome de David Chase pelo de Michael Crichton. Ou ainda, tomando o
exemplo de Donas de casa desesperadas, transmitido na
ABC, e substituindo o nome de David Chase pelo de March Cherry. Ou o
dos Simpsons criado por Matt Groening e transmitido pela
Fox.
Em suma, não somente as boas séries americanas dão
poder ao roteirista como também valorizam os autores talentosos,
principal segredo do seu sucesso. Se mantivermos Sr. Hulot distribuindo
o correio à moda "amerrrricana", será sempre
o estilo Hulot, e não o US Postal.
Yves Lavandier (março de 2011)