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EXCERTOS
EXCERTO
DA INTRODUÇÃO
EXCERTO DO CAPÍTULO 2: PROTAGONISTA - OBJETIVO
PRIMEIRO EXCERTO DO CAPÍTULO 4: CARACTERIZAÇÃO
SEGUNDO EXCERTO DO CAPÍTULO 4: CARACTERIZAÇÃO
PRIMEIRO EXCERTO DO CAPÍTULO 5: ESTRUTURA
SEGUNDO EXCERTO DO CAPÍTULO 5: ESTRUTURA
EXCERTO DO CAPÍTULO 7: PREPARAÇÃO
PRIMEIRO EXCERTO DO CAPÍTULO 8: IRONIA DRAMÁTICA
SEGUNDO EXCERTO DO CAPÍTULO 8: IRONIA DRAMÁTICA
EXCERTO DO CAPÍTULO 9: COMÉDIA
EXCERTO DO CAPÍTULO 10: DESENVOLVIMENTO
EXCERTO DO CAPÍTULO 13: DIÁLOGO
EXCERTO DO LÉXICO
EXCERTO DA INTRODUÇÃO
"Conte-me uma história"
Durante a Segunda Guerra Mundial, no campo de concentração
de Stutthof, uma mulher de nome Flora dirigia um teatro de pão.
Com parte de sua magra ração, ela modelava pequenas figuras.
À noite, escondidas no banheiro, ela e outras prisioneiras animavam
seus atores de miolo de pão, diante de uma platéia de
famintos e condenados. Foi assim até o fim. Essa história
foi relatada ao dramaturgo Joshua Sobol por uma sobrevivente do holocausto,
Irena Lusky, na época em que Sobol realizava pesquisas sobre
o teatro do gueto de Velenious para sua peça Gueto.
Vale como demonstração de que, mesmo nas circunstâncias
mais terríveis, o ser humano necessita de que lhe contem histórias.
Necessidade, aliás, nada supérflua. Podemos viver sem
praticar esporte, sem viajar, sem ter filhos... mas não podemos
viver sem histórias. O relato, seja ele endereçado a nós
mesmos ou aos outros, reportado ou inventado, literário ou dramático,
realista ou simbólico (haja vista as parábolas bíblicas
ou os contos de fada), é tão vital para nossa psique quanto
o oxigênio para nosso organismo. Em A psicanálise
dos contos de fada, Bruno Bettelheim [17] demonstra o quanto
o conto é útil à criança. Não só
porque a distrai e alimenta seu imaginário, mas igualmente, e
sobretudo, porque a ajuda a resolver seus conflitos, lhe dá esperança
no futuro e lhe permite amadurecer sem se tornar psicótica. Em
resumo, porque ele a ajuda a aprender - e a apreender - a vida.
Uma forma de narrativa fascinante
Tornado adulto, o ser humano ainda experimenta essa necessidade de
histórias. Em primeiro lugar, é claro, elas servem para
distrair, no sentido etimológico do termo, ou seja, "extrair
do todo", fazer esquecer o cotidiano. Fazem, porém, muito
mais do que isso. Afinal, uma queima de fogos de artifício, uma
dose de uísque, um jogo de futebol, um programa de tevê,
uma visita à Torre de Belém também distraem; não
conseguem, no entanto, nos permitir o acesso ao pensamento e às
emoções do outro. E isso não é banal. Um
ser humano conhece bem seu próprio pensamento, seus desejos e
suas emoções parasitas. Mas conhece mal sua imagem. Com
relação aos outros, ocorre o contrário: conhecemos
bem suas imagens e suas emoções, mas não seus pensamentos
ou desejos. A dramaturgia possui a faculdade de reunir o todo, de fazer
confluírem imagem, pensamento, desejo e emoção,
permitindo ao espectador de se fundir parcialmente com o outro.
Muito interessante a ressaltar é o fator de esse outro ser ao
mesmo tempo um personagem de ficção - em breve o denominaremos
o protagonista - e o autor que se esconde por trás dele, como
Flaubert se escondia em Emma Bovary (Madame Bovary). Em
dramaturgia, não faltam exemplos: Sófocles velava-se no
velho Édipo (Édipo em Colono), Molière
em Arnolfo (Escola de mulheres), Hitchcock em Manny Balestrero
(Henry Fonda em O falso culpado), Hergé em Tintim,
os Dupondt e o capitão Haddock reunidos (Tintim),
etc. Entre Charlot e Chaplin, a relação é ainda
mais patente. A dramaturgia cria dupla ligação entre autor
e espectador, o que é próprio de todas as artes, e entre
o personagem e o espectador, processo específico e que chamaremos
de " identificação ". Freud [63], Nietzsche
[127] e tantos outros afirmam que esse fenômeno de identificação
constitui um dos prazeres fundamentais do drama, que estaria ligado
a seu efeito terapêutico. Na Índia, em vez de lhes receitar
medicamentos, alguns médicos contam a seus pacientes uma história
em sintonia com os sintomas apresentados.
Podemos também estabelecer paralelo entre dramaturgia e o universo
dos sonhos, com o qual ela entretém singulares semelhanças.
O ser humano é igualmente ator e espectador de seus próprios
sonhos, ainda que nem sempre os sonhos contem uma história. Ora,
essa é precisamente a posição do espectador, quando
ele se identifica com o protagonista de uma obra dramática. E
o sonho, como sabemos, também é alimento vital para nossa
psique.
As origens do drama
A dramaturgia está na essência de todo ser humano. Os
historiadores do teatro costumam localizar sua origem no rito religioso.
A imitação das ações humanas (ou divinas)
aconteceu inicialmente no espaço do sagrado, desde as civilizações
ditas primitivas, fazendo dos sacerdotes seus primeiros atores. Quanto
aos temas, abordavam as atividades humanas fundamentais (nascimento,
morte, caça, etc.) e os elementos naturais (tempestade, sol,
germinação, etc.). Aos poucos, a representação
se enriquece e, sobretudo, passa do sagrado ao profano, mesmo que guarde
algo de sua natureza religiosa (no sentido etimológico do termo).
No Ocidente, esse fenômeno ocorreu em duas ocasiões: no
século VI a.C. na Grécia, e no final da Idade Média
na Europa.
Poderíamos, no entanto, propor outra origem para o drama, de
natureza distinta e, quem sabe, mais profunda. O bebê quando aprende
a andar ou a falar é movido por uma força instintiva:
a imitação. Suas atitudes representam as ações
humanas de seus pais e irmãos. Um pouco mais tarde, além
de não parar de imitar seus precursores, a criança faz
mais: cria um universo mais ou menos fictício, em que também
interpreta todos os papéis. Fabulação e duplicação
fazem parte de sua vida cotidiana. Concretamente, situando-nos nessa
zona simbólica intermediária entre realidade e fantasia,
a dramaturgia assemelha-se ao jogo do " faz de conta " das
crianças. Ousaríamos mesmo afirmar que se trata de seu
equivalente adulto. Resumindo, o primeiro ator - espectador - autor
dramático não seria o feiticeiro pigmeu ou o sacerdote
grego, mas a criança que cada um de nós foi. Essa é,
em parte, a razão pela qual ela estará frequentemente
no centro das reflexões levantadas neste livro. Cabe sublinhar
que a criança de que falamos é, antes de mais nada, espectador;
em seguida, autor (ou adaptador, para ser mais exato) e, enfim, ator.
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EXCERTO DO CAPÍTULO 2: PROTAGONISTA-OBJETIVO
Quatro condições essenciais
Estabelecer um objetivo único para o protagonista não
seria, em princípio, suficiente para garantir a eficácia
de uma construção narrativa. Seria igualmente fundamental:
1- que esse objetivo fosse conhecido, ou ao menos percebido, pelo espectador,
sem muita demora, no começo da narrativa. Enquanto o espectador
não for capaz de pressentir, mais ou menos conscientemente, o
desejo/necessidade do protagonista, a ação não
terá sido instalada e ele se manterá alheio à história,
sensação suportável apenas a curto prazo. Essa
primeira condição impõe ao autor a necessidade
de que o objetivo do protagonista já esteja claramente definido
em seu espírito. Ainda que se opte por navegar em certo nível
de mistério, não há como construir uma narrativa
rigorosa sem saber para onde se encaminha a ação;
2- que o objetivo estivesse ancorado em alguma motivação.
O protagonista deve ser capaz de compartilhar seu desejo com o espectador.
Se esse último não for capaz de compreender - sem necessariamente
aprovar - o objetivo do protagonista, nada estará em jogo em
seu espírito e não haverá suspense;
3- que, por meio da ação, se revelasse particularmente
difícil ao protagonista atingir seu objetivo. Isso, contudo,
sem configurar uma missão impossível. Uma das grandes
dificuldades do ofício do autor dramático é a dosagem
dos obstáculos. Retornaremos a esse aspecto nos próximos
capítulos;
4- que o protagonista fosse movido por intenso e irresistível
desejo de atingir seu objetivo. É fundamental evitar a impressão
de que o protagonista possa "deixar pra lá" a qualquer
momento ou ainda que, para ele, "tanto faz". Quanto mais o
protagonista quer, mais o espectador se envolve com sua história.
Pensemos em Antígona (Antígona), prestes
a arriscar a própria vida para oferecer uma sepultura digna a
seu irmão; em Galileu (A vida de Galileu), que
afronta a Terra inteira (e até a peste), tamanho é seu
desejo de saber e de provar sua ciência; em Baptiste (Jean-Louis
Barrault), em Os rapazes da geral, que, atirado pela janela
por Avril (Fabien Loris), retorna pela porta - em geral, os insistentes
costumam fazer o contrário: os fazemos sair pela porta, e eles
voltam pela janela; em Hildy (Rosalind Russell), em O grande escândalo,
que, para obter uma manchete, não hesita em correr de saia justa
e salto alto, atrás de uma testemunha, e de fazê-la parar
com um movimento de rugby; em Ethan (John Wayne), em A desaparecida
(1956), que percorre o velho oeste americano durante 15 anos para reencontrar
sua sobrinha; em Zé do Burro, em O pagador de promessas,
que enfrenta o clero, a polícia, a imprensa, os fanáticos
e os comerciantes para carregar uma cruz dentro de uma igreja; em McMurphy
(Jack Nicholson), em Voando sobre um ninho de cucos, cuja
vontade de assistir a um jogo de beisebol é tamanha, a ponto
de inventar uma partida imaginária diante de uma tela escura;
em Ahmad (Babak Ahmadpoor), em Onde é a casa do amigo?,
que pede insistentemente à sua mãe (Iran Outari) autorização
para sair até que ela ceda; em Krimo (Osman Elkharraz), em A
esquiva, que dá tudo o que possui (patins, tênis,
videogame, etc.) a Rachid (Rachid Hami), em troca do papel de Arlequim,
para ficar próximo da jovem por quem está apaixonado;
em Gabrielle (Eva Longoria), no primeiro episódio de Donas
de casa desesperadas, que corta grama à meia-noite, de
vestido longo, a fim de impedir seu marido de descobrir que ela transa
com o jardineiro.
Certas obras dramáticas podem frustrar o espectador, porque seus
protagonistas não se esforçam ao máximo para atingir
seus objetivos. Em O caloiro da máfia, por exemplo,
o protagonista (Matthew Broderick) se deixa enrolar como um pato - entre
outras coisas, o forçam a casar-se - e, embora não esteja
nada contente, protesta ligeiramente, mas pouco faz para se livrar.
Como esperar que o espectador torça pelo protagonista, se ele
próprio não investe no que deseja? Em outras palavras:
se essa ação, principal, não importa muito para
os personagens, por que importaria para o espectador? É a razão
do fracasso de Os 4 espiões. Hitchcock [78] explica:
"Penso saber por que o filme não foi bem sucedido. Em
um filme de aventuras, o personagem principal deve ter uma meta. Isso
é vital para a evolução da história e para
a participação do público, que deve apoiar o personagem
e, eu diria, quase ajudá-lo a atingir seu objetivo. Em Os
4 espiões, o herói tem uma tarefa a realizar (matar
alguém) mas essa tarefa lhe causa horror, e ele evita cumpri-la
de todas as maneiras."
Na verdade, poderíamos arriscar dizer que o protagonista de Os
4 espiões tem dois objetivos contraditórios: o
primeiro, matar alguém, imposto por seus superiores; o segundo,
escapar dessa tarefa. Infelizmente para a eficácia do filme,
falta tensão ao primeiro objetivo. E o segundo não é
tratado. Os 4 espiões faz parte dessa categoria
de obras nas quais uma missão é confiada a um personagem
(em geral um soldado, um policial, um espião ou um detetive).
Para que esse tipo de obra funcione, é necessário que
o futuro protagonista seja motivado pela missão em si e que se
aproprie do objetivo que lhe é atribuído.
Concluindo, um protagonista deve ser, sobretudo, ativo. Eventualmente,
reativo. Jamais passivo. E seu objetivo deve dar a impressão
de se tornar, a cada cena e cada vez mais, uma idéia fixa, uma
missão, uma necessidade irrefutável ou uma fatalidade.
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PRIMEIRO
EXCERTO DO CAPÍTULO 4: CARACTERIZAÇÃO
O
príncipe encantado de um casal fusional
Outro personagem discutível e coroado de sucesso é Jack
(Leonardo DiCaprio) em Titanic. Em que pesem qualidades
narrativas e espetaculares inegáveis, creio que o filme lhe deve
boa parte de sua popularidade. Pois Jack é o que se chama de
Salvador com S maiúsculo. Vejamos: no espaço de poucos
dias, salva Rose (Kate Winslet) do suicídio, do tédio,
de sua frigidez, do casamento, da aristocracia e, uma segunda vez, da
morte! E mais, faz tudo isso com o sacrifício da própria
vida. Muita esperteza da parte de James Cameron. Ao criar o personagem
de Super-Salvador, de grandeza quase igual à de Cristo, o roteirista
de Titanic nos propõe o príncipe encantado
que muitos homens gostariam de ser e muitas mulheres sonham encontrar.
Infelizmente, Senhoras e Senhores, no mundo real, os príncipes
encantados não existem. Titanic propõe uma
visão do amor destinada a crianças de quatro anos: uma
moça sofre e, em vez de ir à luta e encontrar nela mesma
seu salvador (com s minúsculo), depara-se com o belo Leonardo,
com seu espírito livre, seu senso de sacrifício e sua
filosofia de velho monge budista. Em resumo, as mulheres que sonham
com um Jack em suas vidas, em minha opinião, correm o risco,
de se decepcionar terrivelmente ao ver o filme.
Titanic, em sua primeira fase, conta uma história
de amor na fase de fusão. Essa é a fase em que tudo corre
bem, em que 1+1=1, em que o outro só tem qualidades, em que se
está apaixonado, em que as emoções são fortes
e deliciosas. É de lamentar que o cinema, bem como o teatro e
a literatura, aliás, se interessem menos pela segunda fase de
uma relação sentimental, e menos ainda pela terceira,
onde 1+1=3 (o eu, o outro e o casal). A maioria das histórias
de amor descreve o momento imediatamente anterior ou posterior ao encontro.
O resto, como em todos os contos de fada, implica que o casal viverá
unido e feliz até o final de seus dias. Sabemos todos que na
vida real raramente isso acontece. "A coisa mais reconfortante
que se pode mostrar aos filhos" - observa Françoise
Dolto [48] - "é uma vida de casal que resiste ao tempo."
E será isso o que há de mais reconfortante para ser mostrado
aos espectadores?
É possível encontrar várias explicações
para essa grande lacuna. Primeiramente, o fato de, numa relação
amorosa, a fase da "lua-de-mel" ser a mais forte em emoções
e espetáculo. Em segundo lugar, o fato de muitos artistas se
projetarem no que escrevem e estarem mais habituados a apaixonar-se
do que a alimentar um romance de longa duração. Entre
as exceções, ou seja, as obra que se interessam pela vida
de um casal após a fase de fusão, pode-se citar Viagem
em Itália ou a sétima temporada de Donas
de casa desesperadas. Ou um curta metragem ironicamente intitulado
Âges ingrats ("idades ingratas"), em que
um casal de velhos (Macha Méril, Philippe Nahon) é posto
à prova no momento de festejar seus 30 anos de casamento. Essas
exceções demonstram que uma relação conjugal
que resiste ao tempo não é necessariamente uma vida isenta
de conflitos. Poder-se-ia também citar, é claro, narrativas
nas quais a fase 2 do casal se eterniza como um longo dia sem pão:
O gato, Mariage, Quem tem medo de
Virgínia Woolf?, Cenas da vida conjugal,
Uma mulher sob influência, Depois do amor
ou Quando o amor acaba. Esses, no entanto, são
casos um pouco diferentes e... desesperadores, diante dos quais só
se tem uma vontade: voltar a cair nos braços de Jack!
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SEGUNDO EXCERTO DO CAPÍTULO 4: CARACTERIZAÇÃO
D. CARACTERIZAÇÕES NOTÁVEIS
Se existe área em que o gosto pessoal do espectador
é levado em consideração, essa é a caracterização.
Justamente por isso, a escolha dos personagens notáveis citados
abaixo foi feita segundo meu gosto, minha subjetividade e não
deve ser considerada pista de interesses. Cada leitor comporá
uma lista de acordo com seu gosto.
O que torna um personagem instigante?
Os personagens que salvam o planeta com seu pênis
e uma faca me aborrecem profundamente. Prefiro Haddock a Tintim, Obélix
a Astérix, Falstaff ao príncipe Henry (Henrique
IV), Cyrano de Bergerac a Christian, o agente 86 (Don Adams
em Olho vivo) ao agente 007 (James Bond).
Se não fosse a falta de jeito de Clark Kent, Superman seria,
para meu gosto, insuportável. O mesmo aconteceria com Homem-Aranha
se não fosse a timidez de Peter Parker. Foi por simpatizar com
Perrin-Pignon (Jacques Brel, Pierre Richard ou Jacques Villeret) que
Milan (Lino Ventura), Campana (Gérard Depardieu) ou Brochant
(Thierry Lhermitte) se tornaram mais humanos. Muitos filmes escritos
por Francis Veber, aliás (Fuja enquanto e tempo,
Que o diabo seja surdo, Os compadres, Os
fugitivos, O jantar de palermas), ainda que metaforicamente,
contam como um forte se humaniza domesticando a parte fraca que existe
nele, seu lado Pignon.
Ao longo de minha carreira tive ocasião de observar alguns elementos
constantes nos personagens que mais me tocaram. Segue-se uma pequena
lista deles:
- Antígona (Antígona)
- Édipo (Édipo rei)
- Falstaff (Henrique IV)
- Otelo (Otelo)
- Lear (Rei Lear)
- Arnolfo (Escola de mulheres)
- Nora (Casa de bonecas)
- Cyrano (Cyrano de Bergerac)
- Charlot (Charles Chaplin)
- o Bucha e Estica (Oliver Hardy e Stan Laurel)
- Mãe Coragem (Mãe Coragem e seus filhos)
- Galileu (A vida de Galileu)
- George Bailey (James Stewart) em Do céu caiu uma estrela
- Cody Jarrett (James Cagney) em Fúria sanguinária
- Will Kane (Gary Cooper) em O comboio apitou três vezes
- Anne Sullivan em The miracle worker
- C.C. Baxter (Jack Lemmon) em O apartamento
- Thomas More (A man for all seasons)
- Felix (Tony Randall) em The odd couple
- César (Yves Montand) em César et Rosalie
- Dersou Ouzala (Maksim Munzuk) em Dersu Uzala, a águia
da estepe
- McMurphy (Jack Nicholson) em Voando sobre um ninho de cucos
- Franck Poupart (Patrick Dewaere) em Série negra
- Pupkin (Robert De Niro) em O rei da comédia
- Charlotte (Charlotte Gainsbourg) em A descarada
- Ahmad (Babak Ahmadpoor ) em Onde é a casa do amigo?
- Alice (Mia Farrow) em Alice
- Phil Connors (Bill Murray) em O feitiço do tempo
- Peter Duffley (Jim Broadbent) em The Peter principle
- Mulan (Mulan)
- Erin Brockovich (Julia Roberts) em Erin Brockovich
- Carla (Emmanuelle Devos) em Nos meus lábios
- Michael Scofield (Wentworth Miller) em a primeira temporada de Prison
break, minhas observações são as seguintes.
1. Eles não são perfeitos, longe disso. Não são
super-heróis cheios de músculos e matéria cinzenta.
Têm falhas, contradições, complexos e são
deficientes no mais amplo sentido da palavra. Édipo é
cego e impetuoso (além do mais, amaldiçoado). Nora é
ingênua. Cyrano é disforme e covarde no amor. Mãe
Coragem é venal. Felix Unger, maníaco. César, ciumento.
Charlotte, invejosa. Peter, incompetente ao extremo. Charlot é
pobre. Ahmad é uma criança no mundo de adultos, Mulan
é mulher na China medieval. Jarrett, Pupkin e McMurphy estão
na fronteira da psicose; tal como Franck Poupart, um belo exemplo de
garoto de quatro anos num corpo de adulto.
2. Eles não são brancos nem pretos. Isso não quer
dizer que sejam destituídos de contradições em
todos os domínios; são, ao mesmo tempo, covardes e corajosos,
otimistas e pessimistas, avarentos e pródigos. Podem ser obstinados
em cada domínio. Simplesmente, se têm defeitos, têm
também qualidades. E vice-versa. Antígona, Édipo,
Felix, George Bailey e Will Kane são íntegros. Cyrano
é fisicamente corajoso. César é cheio de charme.
Mulan é astuciosa. Falstaff adora a vida, o Bucha e Estica têm
a candura das crianças.
3. Mais especificamente, eles, por vezes, têm uma qualidade notável,
uma pequenina qualidade que poderá mostrar-se útil. Charlot
num minuto é capaz de se botar na pele de padre, pugilista, funâmbulo
(ver adiante). Cyrano escreve poemas maravilhosos. George Bailey tem
amigos. Dersou sabe como sobreviver na tundra. Carla sabe ler lábios.
Michael Scofield é terrivelmente malicioso. Às vezes,
basta uma única dessas facetas para nos fazer rir. O Bucha e
Estica ou Peter Duffley seriam certamente menos atraentes se não
nos divertissem. Às vezes, também, se não fosse
por sua perseverança, eles, em si, não teriam muita coisa
para mostrar - o que vai ao encontro da característica 5. Mas
que qualidade fantástica é a perseverança, tanto
na vida como na dramaturgia!
4. Eles vivem do conflito. Sobre isso, já falamos muito. O personagem
que passa a vida em brancas nuvens é um personagem tedioso na
ficção. Lear foi privado de seu reino, de seus vassalos,
de sua filhas, de sua razão e, por fim, da vida. Otelo é
cego pelo ciúme. Coragem perde seus filhos. Antígona,
Will Kane e Thomas More estão bem sós frente à
adversidade. McMurphy é um rosário de frustrações.
O Bucha e Estica, um acúmulo de fracassos. Alice vê-se
tragada pela vida; Phil Connors, imobilizado num dia que dura indefinidamente.
O conflito pode tomar a forma de culpa. É o que faz de George
(Montgomery Clift) um personagem instigante em Um lugar ao sol
por oposição a Chris (Jonathan Rhys Meyers) em
Match point. Os dois fazem de tudo para ascender socialmente,
mas a consciência moral do segundo é a de um réptil.
5. Eles se debatem, lutam, mas não esperam ser salvos, como Rose
(Kate Winslet) em Titanic. Agarram o destino com as mãos.
Cada um com sua maneira de lutar. Édipo leva seu questionamento
às últimas consequências. Pupkin sequestra um ator
famoso (Jerry Lewis) para ele próprio fazer-se de ator. Arnolphe
faz de tudo para separar Agnès de Horace. Galileu resiste, persevera,
às vezes contorna obstáculos. Idem para Thomas More que
usa todas as astúcias do direito para evitar a decapitação.
Erin Brockovich move céus e terras para dar cabo de Golias. McMurphy
inventa um jogo de baseball imaginário. Carla, uma secretária
ingênua, insociável, covarde e sexualmente frustrada, recusa-se
a baixar a cabeça. Chega mesmo a dar prova de firmeza de caráter
em certas circunstâncias. Começa por escolher um marginal,
Paul (Vincent Cassel), para assessorá-la, como se seu inconsciente,
sabendo o que é bom para ela, tivesse percebido ser Paul o tipo
certo para sacudir-lhe a vida. Quando um de seus colegas a engana, ela
pede que Paul roube um dossiê e o pressiona: "Você
me deve algo". Em suma, Carla, como todos os personagens aqui
mencionados, sem certas particularidades, seria uma perfeita heroína
de melodrama.
6. Às vezes, representam papéis tipo "Sim, mas...".
É, eu tenho vontade de mudar. De atingir meu objetivo, mas tenho
medo. Medo do vazio, daquilo que não conheço, medo de
largar minhas muletas, de não conseguir chegar aonde pretendo.
Como diz Hamlet em seu famoso monólogo (Hamlet),
nós nada fazemos e suportamos nossos males por medo de enfrentar
aqueles que não conhecemos. Sem chegar ao extremo de Hamlet,
que está sempre postergando seu julgamento, sentimos todos esses
personagens, num ou noutro instante, a pique de a tudo renunciar. De
todo o repertório teatral, o caso mais fenomenal de todos os
"Sim, mas..." é o de Édipo. Quando Tirésias
lhe dá a solução, ele poderia escolher atingir
seu objetivo desde o início da peça. Sim, mas Édipo
tem medo da verdade. Também Charlot, quando reencontra finalmente
sua querida florista, prefere desaparecer. Will Kane está a um
triz de montar em um cavalo e fugir. C.C. Baxter vai embebedar-se num
bar quando descobre que a mulher que ama já está comprometida.
Phil Connors tenta suicidar-se para escapar da repetição
interminável de um dia em sua vida. Michael Scofield tem um momento
de terrível desânimo (Prison break, 1.17).
"Você precisa ter fé", seu irmão lhe diz
(Dominic Purcell).
Essa sexta característica, no entanto, deve ser manipulada com
cuidado. Como vimos, o espectador identifica-se com o protagonista que
mostra firmeza na perseguição de seus objetivos. Quando
Cyrano hesita, depois de ter conseguido seduzir Roxane (final do quarto
ato), muitos passam a achá-lo mais enfadonho do que atraente.
Um pouco como sucede com Stevens (Anthony Hopkins) em Os despojos
do dia, quando ele não consegue confessar o amor que
sente.
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PRIMEIRO EXCERTO DO CAPÍTULO 5: ESTRUTURA
Um nódulo dramático particular
A quase-totalidade das peças de teatro possui
estrutura simples: primeiro, segundo e terceiro ato, com um incidente
desencadeador no primeiro e um clímax no final do segundo, o
que resulta neste diagrama:

Esse diagrama simples e lógico é tão ancorado
no inconsciente dos autores e dos espectadores que o encontramos em
todo tipo de obra, inclusive em numerosos documentários (cf.
Roger e eu, páginas 510-511) ou em narrativas
tão atomizadas quanto 21 gramas. Um pai de família,
acompanhado por suas duas filhas, é atropelado e morre. Eis o
incidente desencadeador. O filme segue a trajetória de sua viúva
(Naomi Watts), a do motorista do carro (Benicio Del Toro) e do homem
(Sean Penn) que recebeu em transplante o coração da vítima.
A grande originalidade do filme está em propor os múltiplos
elementos dessas três intrigas na mais completa desordem, convidando
o espectador a recompor mentalmente os pedaços do quebra-cabeça.
A narrativa, todavia, não é tão desconstruída
quanto parece. O essencial do incidente desencadeador é mostrado
aos 25 minutos de filme (que no todo tem pouco menos de duas horas),
e o essencial do clímax, cinco minutos antes do final. Em resumo,
21 gramas respeita esse diagrama.
A estrutura modificada
As peças (teatrais) ditas "bem feitas" do século
XIX introduziram pouco a pouco uma estrutura um pouco diferente, como
que um enriquecimento dessa estrutura simples, amplamente desenvolvida
pelo cinema - o que não implica dizer que todos os filmes a utilizam.
Essa modificação consiste em introduzir um golpe de surpresa
no começo do terceiro ato, de tal maneira que ele relança
a ação. Como se o autor dissesse ao público: "Parem
! Não partam ! Sim, é verdade que acabo de concluir a
ação, mas a resposta dramática apresentada talvez
não seja a boa. Alguma coisa ainda subsiste que pode ameaçar
a posição atingida pelo protagonista, que pode impulsioná-lo
a retomar seu objetivo (atenção: o mesmo objetivo do começo
da história)". Ela demanda consequentemente uma segunda
resposta dramática à questão colocada no primeiro
ato.
Nessa nova estrutura, turbinada, o terceiro ato pode ser mais longo,
já que ele não é mais desprovido de ação
ou de propósito dramático. Se uma divisão grosso
modo da duração dos atos numa estrutura simples corresponde,
hipoteticamente, a 20-75-5 páginas (ou minutos), a dessa versão
modificada teria 20-75-15, por exemplo (N.B. esses números são
valores relativos, e não dogmas). E esse terceiro ato modificada
é construído de acordo com o princípio orientador
do todo, ou seja, ele possui seu próprio incidente desencadeador
(o golpe de surpresa em questão), seu próprio clímax,
trazendo uma segunda resposta à questão dramática
já respondida e seu próprio terceiro ato. O que resulta
no seguinte:

E.T. (E.T., o extra-terrestre) morre. Acabou. O segundo
ato se encerra. De repente, percebemos que ainda existe um sopro de
vida dentro dele. Seu objetivo (voltar para sua casa) é reativado.
Ele tenta novamente, com a ajuda de Elliot (Henry Thomas). E, dessa
vez, consegue.
Sra. Thorward está viva, descobriram seu paradeiro (Janela
indiscreta). As suspeitas de Jeff (James Stewart) eram, consequentemente,
infundadas. Ele abandona então seu objetivo, e o percebemos decepcionado
pelo fato de uma vizinha não ter sido assassinada na janela.
Golpe de surpresa: o cachorrinho dos vizinhos de cima foi morto, e Thorward
(Raymond Burr) é o único a não dar a menor atenção
às lamentações de sua dona. O casal Jeff e Lisa
(Grace Kelly) retoma seu objetivo (provar a culpabilidade de Thorward)
até que a briga entre Jeff e Thorward intervenha, constituindo
o clímax do terceiro ato.
No último dia do prazo fixado para o dia 15, Tintim e capitão
Haddock ainda não acharam o tesouro (O tesouro de Rackham
o Terrível). Eles desistem e retornam para a Europa.
Final do segundo ato. Golpe de surpresa: o castelo de Moulinsart está
a venda, o que recoloca Tintim na pista do tesouro. E, dessa vez, ele
o encontra.
Cabe observar que o segundo incidente desencadeador, ao contrário
daquele intervindo no primeiro ato, não deve ser fortuito, sob
o risco de se tornar um deus ou, no melhor dos casos, um diabolus ex
machina. Ele deve necessariamente decorrer das ações que
o precedem, mas sem deixar de nos surpreender.
Duas respostas dramáticas opostas
Na maioria dos casos, a segunda resposta dramática é
contrária à primeira. Por exemplo, em muitos filmes hollywoodianos,
o protagonista fracassa no final do segundo ato, para melhor triunfar
no final do terceiro (cf. o caso de E.T., o extra-terrestre,
Janela indiscreta e O tesouro de Rackham o Terrível,
acima, além das construções de Astérix
e o caldeirão e O apartamento, adiante).
Às vezes a resposta dramática é a mesma (positiva
em geral), mas sua obtenção exige dois clímax,
em vez de um, como que para valorizá-la. É o caso de Alien,
o 8º passageiro. Pensamos que o monstro está morto.
Surpresa: ele ainda está vivo e pronto para o contra-ataque.
Os exemplos em que a resposta dramática é primeiramente
positiva para, após o golpe de surpresa, se tornar negativa são
bastante excepcionais. A ameaça é um dos
raros a ter a coragem de decepcionar dessa maneira o espectador. Os
rapazes da geral funciona de maneira semelhante. No final do
segundo ato, Baptiste (Jean-Louis Barrault) atingiu seu objetivo, conseguindo,
enfim, conquistar Garance (Arletty), e eles dormem juntos. Golpe de
surpresa: Nathalie (Maria Casarès) aparece e faz um escândalo.
Garance decide então desaparecer. Baptista tenta em vão
reencontrá-la e o terceiro ato se conclui em meio à multidão
que toma de assalto um boulevard num desfile carnavalesco.
Como já descrito, em Janela indiscreta, bem como,
aliás, em Intriga internacional (cf. Capítulo
15), pode ocorrer de o clímax do terceiro ato ser mais intenso
que o do segundo. Nem sempre, porém, essa é uma boa idéia,
pois isso pode levar o espectador a perder o trem do primeiro clímax.
Apesar disso, não deixa de ser uma maneira de respeitar o crescendo
do conjunto da obra e dele participar.
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SEGUNDO EXCERTO DO CAPÍTULO 5: ESTRUTURA
CASABLANCA
(1942)
Foi muito divulgada a idéia de que Casablanca não
possui roteiro. A fantasia de que um grande sucesso, artístico
e comercial, pode ser feito sem o ponto de partida fundamental, que
é a construção narrativa, conforta aqueles que
as regras importunam (rebeldes e preguiçosos, entre outros).
A realidade me parece mais trivial: Casablanca deve seu
sucesso a fatores afetivos e espetaculares (o ambiente, o exotismo,
a oposição ao nazismo e, obviamente, ao par Bergman-Bogart),
tanto quanto a uma estrutura clássica sólida, "disfarçada"
(por um objetivo singular e numerosos personagens), mas solidamente
estabelecida. Não é de estranhar, aliás, que o
filme seja a adaptação de uma peça de teatro.
Incidente desencadeador: inexistente.
Protagonista: Rick (Humphrey Bogart). Casablanca
é, entre outras coisas, o retrato de um homem: desde o começo,
Rick é apresentado como um tipo indiferente de todos os pontos
de vista, que se recusa a se comprometer. Ele é categórico:
"Não me arrisco por ninguém e por nada".
Quando, mais tarde, ele se expõe pelo casal de búlgaros,
ele o faz sem vaidade e evita toda demonstração de reconhecimento.
Objetivo: manter-se neutro e invulnerável emocional, política
e comercialmente. É um objetivo singular, e é isso que,
em parte, torna Casablanca tão difícil de
analisar. Manter-se neutro não é um objetivo que conduza
à ação, mas à reação. O título
original da peça, aliás, é Everybody comes
to Rick's. Em outros termos, são os obstáculos
- e o conflito - que vêm a Rick, e não o inverso. Isso
dito, uma vez dado o empurrão inicial, ele se tornará
mais ativo. E seu objetivo se transforma em resistir à tentação
de se comprometer, de se engajar. N.B. ainda que raro no repertório,
podemos encontrar o mesmo tipo de objetivo reativo em Édipo
em Colono, no qual o velho Édipo se recusa a tomar partido
ou se sentir responsável pela batalha que opõe seus dois
filhos. Ao contrário de Rick, porém, Édipo resiste
à pressão até o final, antes de morrer serenamente.
Passagem primeiro ato - segundo ato: a chegada de Ilsa (Ingrid
Bergman) não pode ser considerada um incidente desencadeador,
já que não é esse o nódulo dramático
que impulsiona Rick a estabelecer um objetivo. Em contrapartida, até
sua chegada, podemos considerar que Rick vive em equilíbrio estável.
Ele dribla sem se perturbar os pequenos obstáculos que se lhe
apresentam, e que mais servem para caracterizá-lo. Quando Ilsa
chega, a pressão torna-se muito mais forte. Então, se
o primeiro ato termina quando compreendemos o objetivo de Rick, a ação
só deslancha quando Ilsa entra em cena.
Obstáculos externos: numerosos são os obstáculos
que minam a resistência de Rick. As ameaças e chantagens,
o risco de fechamento de seu café, mas o mais belo obstáculo
é, de longe, Ilsa.
Obstáculo interno: o amor de Rick por Ilsa. Esse amor
começa por emocionar Rick e termina por obrigá-lo a tomar
partido.
Clímax: Rick e Ilsa se beijam. E ele aceita, enfim, ajudar
Victor Laszlo (Paul Henreid), mas quer guardar Ilsa junto a si.
Resposta dramática: negativa.
Terceiro ato: é bastante longo (16 minutos), e isso é
normal. Rick aceitou ajudar Laszlo, o que se torna um objetivo local.
Assim sendo, o terceiro ato é composto de: o aprisionamento de
Laszlo, a negociação de sua liberação com
Renault (Claude Rains), a venda do café a Ferrari (Sydney Greenstreet)
e o clímax do terceiro ato: morte de Strasser (Conrad Veidt)
e decolagem do avião.
AS VIDAS DOS OUTROS (2006)
Incidente desencadeador: o capitão Wiesler (Ulrich Mühe),
o coronel Grubitz (Ulrich Tukur) e o ministro Hempf (Thomas Thieme)
estão assistindo à representação da última
peça de Georg Dreyman (Sebastien Koch). Wiesler e Hempf comentam
que Dreyman deve ser vigiado.
Protagonista: Georg Dreyman. De fato, Wiesler é o personagem
que se transforma e o autor dedica a ele um certo número de cenas.
Mas o personagem sob perigo é claramente Dreyman. O começo
do filme não deixa dúvida a esse respeito. Tememos por
Dreyman e nos identificamos rapidamente com ele. Se observarmos de mais
perto o filme como um todo, o personagem que mais vive conflito é
Christa (Martina Gedeck). Mas ela é tratada como um personagem
secundário. Estruturalmente, é Dreyman o protagonista.
Objetivo: não ser descoberto. Num primeiro momento, este
objetivo é ligado ao que chamaremos em breve de "questão
irônica" (cf. página 324). De um modo geral, Dreyman
não tem objetivo consciente em toda a primeira metade, porém,
como sabemos que ele é espionado pela Stasi, lhe atribuímos
um. A partir do momento que ele começa a conspirar, este objetivo
se torna consciente, ainda que ele ignore que está sendo grampeado.
Subobjetivo: verificar que seu apartamento está seguro,
esconder sua segunda máquina de escrever, esconder sua atividade
de Christa. Na primeira metade do segundo ato, Dreyman descobre que
Christa tem um caso forçado com Hempf. Ele procura então
fazê-la romper. Este objetivo local não é um subobjetivo
do objetivo geral. Em contrapartida, é indiretamente um obstáculo.
Pois só aumenta a motivação de Hempf pra perseguir
Dreyman.
Passagem primeiro ato - segundo ato: Grubitz decide grampear
a linha de Dreyman.
Obstáculos internos: na primeira metade, Dreyman é
um "bom socialista". Ele apenas critica o regime por impedir
Albert Jerska (Volkmar Kleinert), seu amigo diretor de teatro, de trabalhar.
Na segunda metade, Dreyman emancipa-se e corre riscos de ser preso.
Obstáculos externos: a barbárie, o vício
e a loucura paranóica do regime da Alemanha de Leste. O filme
oferece um testemunho forte, de tom quase documental. A propósito
disso, ele começa com uma aula de interrogatório de dar
calafrios.
Clímax mediano: Albert Jerska se suicida. Este nódulo
dramático leva Dreyman a tomar partido e a escrever um artigo
denunciando o regime. Não é por acaso se a queda de Wiesler
acontece mais ou menos ao mesmo tempo no filme.
Clímax: a segunda revista sem resultado do apartamento
que conclui-se com o suicídio de Christa.
Fim do segundo ato: Grubitz declara que a operação
"Lazlo" - isto é, o grampea-mento da linha de Dreyman
- está encerrada.
Resposta dramática: positiva.
Terceiro ato: duração de 15 minutos. Ele serve
principalmente para resolver uma das ironias dramáticas principais
do filme: Dreyman descobre que ele estava sendo grampeado e entende
o papel que Wiesler representou. Mesmo que este terceiro ato contenha
um incidente desencadeador (a resolução em questão)
e uma pequena ação - Dreyman investiga sobre Wiesler -,
não se trata aqui de uma estrutura modificada. Primeiro, porque
alguns anos se passam entre o fim do segundo ato e o começo desta
ação. Segundo, porque a ação é nova.
Não é a ação principal que é relançada
por um golpe de surpresa.
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EXCERTO DO CAPÍTULO 7: PREPARAÇÃO
Promessa é dívida
Apesar da obviedade da cena a fazer, por vezes um
autor faz promessas que acaba por não cumprir.
Em O silêncio dos inocentes, Clarice (Jodie Foster)
faz treinamento para ingressar no FBI e deve investigar os crimes de
um perigoso psicopata. Para compreender a mentalidade desse último,
seu superior (Scott Glenn) lhe sugere visitar outro criminoso, Hannibal
Lecter (Anthony Hopkins), ex-psiquiatra encarcerado em uma prisão
de segurança máxima. Lecter tem a reputação
de ser uma manipulador diabólico, e Clarice é alertada:
"Não lhe revele nada a seu respeito e, sobretudo, não
o deixe penetrar sua cabeça". Nas entrelinhas entendemos:
"Caso contrário, isso lhe custará caro". Pouco
tempo depois, ficamos sabendo que Lecter conseguiu levar seu companheiro
de cela à morte. Nos dizemos que, realmente, para Clarice, todo
o cuidado é pouco. E assim, quando desde sua primeira conversa,
Lecter lhe pede informações sobre sua vida pessoal, nos
inquietamos e esperamos o pior. Mas não! Clarice acaba por lhe
fazer confidências, mas isso fica sem consequências, bem
como o anúncio feito, sem pagamento.
Se ficamos decepcionados é porque perdemos uma bela ocasião
para um conflito suplementar. No caso de O silêncio dos
inocentes, não se trata apenas disso. Os roteiristas
não se preocuparam em criar uma ligação entre as
confidências de Clarice e a evasão de Lecter - que uma
tenha propiciado a outra, por exemplo -, o que teria dado mais rigor
e coesão ao filme, além de demonstrar que, na tentativa
de prender um psicopata, a estagiária do FBI teria deixado escapar
outro, ainda mais psicopata e perigoso. Enfim, o alcance do objetivo
- abordar a impotência da sociedade americana diante de seus loucos
- teria sido ainda mais contundente.
Em O exterminador implacável 2: O dia do julgamento,
John Connor (Edward Furlong), sua mãe (Linda Hamilton) e o gentil
robô (Arnold Schwarzenegger) são perseguidos por um maldoso
robô transformista, o T-1000 (Robert Patrick). Ao término
de uma das cenas de perseguição, o T-1000 deixa um pedaço
de metal (sua carne) no teto do carro dos protagonistas. John Connor
o pega com as mãos nuas e o joga na calçada. T-1000 chega,
e o pedaço de metal começa a fundir-se ao corpo de seu
proprietário. Ora, fora plantada - aliás, de maneira insistente
e desnecessária - a informação de que o T-1000
possui a capacidade de se travestir em qualquer ser humano que ele tenha
tido a ocasião de tocar. Esperamos todos que ele se transforme
então em
John Connor e instale a confusão entre
os co-protagonistas. Nada disso acontece, e o robô prefere aparecer
na pele da mãe, no momento em que o conflito se resolve. Ao argumento
de que o robô não teria nenhum interesse em se fazer passar
por John Connor (já que o que ele quer é apenas matá-lo),
a resposta fica no ar: por que então anunciá-lo?
No meio de Minority report, relatório minoritário,
o médico (Peter Stormare) que acaba de transplantar olhos em
John (Tom Cruise) recomenda: "Espere 12 horas antes de retirar
as bandagens, senão você ficará cego".
Até um despertador é acionado. O problema: John é
procurado por seus ex-colegas e eles estão por perto. Scanners
ambulantes são encarregados de vistoriar todas as identidades
oculares no prédio em que John se esconde, enquanto o despertador
indica "- 6 horas". Para não ser traído pelo
calor de seu corpo, John mergulha numa banheira com água gelada.
Após várias peripécias, ele é obrigado a
retirar as bandagens do olho esquerda para o controle dos scanners.
Supomos que ele vá ficar cego, mas não; e não se
toca mais no assunto.
Nota de rodapé. Em uma versão do roteiro disponível
na Internet, o anúncio é claramente explorado: o olho
esquerdo de John se torna leitoso em meio ao controle de identidade,
e ele passa o resto do filme com um tapa-olho. Por uma razão
desconhecida, Spielberg não reteve a idéia na filmagem,
sem se ter preocupado em retirar também o anúncio. Esse
não é um caso isolado. Sabemos que um roteiro pode ser
parcialmente reescrito na mesa de montagem. Certas cenas são
às vezes abandonadas porque não funcionam como o esperado.
É um caso entre outros, que justificaria a presença do
roteirista, já que, quando uma cena a fazer acaba nas sobras,
o montador ou diretor não tem obrigatoriamente a presença
de espírito de retirar seu anúncio. O mesmo erro pode
ser cometido nas adaptações para o teatro que cortam no
comprimento das cenas ou as invertem (cf. a versão curta de Hamlet,
dirigida por Kenneth Branagh, página 179). Samson Raphaelson
[141] conta que Ernest Lubitsch lhe teria chamado no set, em plena filmagem,
para verificar se ele poderia mudar uma linha de diálogo. "Imaginem
esse homem, mais apto para escrever um diálogo do que qualquer
outro diretor (
) Ele tinha a inteligência de supor que a
mudança que tinha imaginado poderia eventualmente ter incidência
sobre algum outro ponto da narrativa, sem que ele pudesse se dar conta,
criando uma incoerência com um personagem ou uma situação.
E por isso reclamou minha memória do roteiro e meu senso de caracterização
(
) Por uma linha de diálogo!" Na França,
vemos muitos filmes, telefilmes e seriados cujos diretores possuem ego
mais frágil que Lubitsch e, ainda assim, se recusam a consultar
seus roteiristas, nem durante a filmagem nem durante a montagem, e se
vêem às voltas com buracos e incoerências na sala
de montagem.
Em Le chant de la baleine abandonnée, Yves Lebeau
mostra repetidamente um fuzil que, contrariamente ao preceito de Tchekhov
apresentado como epígrafe no início deste capítulo,
não serve para nada. O desperdício é ainda pior
porque um final lógico para a peça (cf. o tema, no Capítulo
1) teria sido o assassinato da mãe pelos três filhos (com
o famoso fuzil, é claro!). Eles, que se queriam ver livres, enviando-a
para uma pensionato de idosos, acabariam com um cadáver nas mãos!
Em Chouchou, Stanislas (Alain Chabat) declara a Chouchou
(Gad Elmaleh) que quer apresentá-la à seus pais. Chouchou
fica muito lisonjeada, mas isto a assusta. Feito isto, Stanislas - que
já passou dos 40 anos - leva uma bronca de sua mãe por
telefone. A preocupação de Chouchou só aumenta.
Os autores nós prometem uma bela cena de conflito. Alguns minutos
depois, a apresentação de Chouchou se realiza mas a encenação
planejada é completamente abortada. Os pais são adoráveis.
Chouchou espalha sua incultura sem que isto leve a consequências.
Ele consegue até passar por um psicanalista. Enfim, tudo vai
bem. Estamos decepcionados.
O primeiro ato de O dia da saia anuncia um assunto original
e polêmico: uma professora de colégio surtada (Isabelle
Adjani) sequestra seus alunos e lhes ensina Molière sob a ameaça
de uma arma. Este é, inclusive, a situação presente
no cartaz do filme. Infelizmente, este cativante assunto só é
tratado por um minuto e meio no filme, o tempo de uma cena. Uma boa
parte do segundo ato é dedicada ao banal desenrolamento policial
e logístico do sequestro e a uma subintriga sentimental sem interesse
dedicada a um dos policiais (Denis Podalydès).
Que os autores dessas obras não tenham conseguido explorar melhor
seus anúncios é uma coisa. Não se trata de dizer
que é fácil, longe disso! Mas que um diretor, voluntariamente,
deixe uma preparação sem pagamento e o espectador a ver
navios, é outra. Diante da impossibilidade de pagar uma promessa,
o melhor ainda é não prometer e retirar as tochas da cesta
do malabarista.
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PRIMEIRO EXCERTO DO CAPÍTULO
8:
IRONIA DRAMÁTICA
NB: para a definição
de ironia dramática cf. o extracto de léxico abaixo.
Participação do público
Como demonstram todos esses exemplos, a ironia dramática é
uma ferramenta extraordinária de participação do
público; ela coloca o espectador em situação muito
privilegiada em relação à vítima, situação
que, infelizmente, não lhe é oferecida com frequência,
quando se trata de sua vida. Fora da ficção, quase sempre
avançamos pelo mundo às cegas e, apesar de tentar planificar
nossa vida, criando marcas de identificação e objetivos,
nem sempre conseguimos - como, aliás, muitos personagens da dramaturgia
- fazer as coisas acontecerem como o previsto. Alguns evocarão
o destino. O acaso também tem seu papel. Nosso inconsciente (a
parte, portanto, invisível do iceberg) é que está,
muitas vezes, na origem desses inesperados.
Além disso, somos bombardeados por inúmeras mentiras.
"Vivemos todos dentro de uma grande mentira", afirma
Viktor (Al Pacino) em Simone, filme escrito por Andrew
Niccol, autor de vários roteiros (Simone, Gattaca,
A vida em directo) abordando o tema da grande mentira
pública. Isso dito, as mentiras não vêm todas de
políticos, publicitários ou dirigentes de mídias.
A mentira começa em nossa infância e dentro do círculo
familiar. Como explica Claude Steiner [169], a mentira pode ser expressa
por palavras, mas igualmente por atos. Por exemplo, quando um pai faz
o contrário do que ensina ao filho, está mentindo. Quando
negamos o que pensamos para não nos comprometer, estamos mentindo.
Ora, a mentira atinge a capacidade de consciência do ser humano
e, em fortes doses, pode levar à loucura.
Podemos agora facilmente compreender a enorme satisfação
que experimenta o espectador quando, diante de seus olhos excepcionalmente
lúcidos, personagens cegos se agitam, vítimas de mentiras
cujo alcance só ele pode compreender, e caem em armadilhas que
só ele é capaz de evitar. Que prazer quando o autor convida
o espectador a tornar-se seu cúmplice, promovendo-o à
superioridade em relação a certos personagens e oferecendo-lhe
as chaves dos segredos da intriga. O interesse que a dramaturgia suscita
há 25 séculos tem, certamente, algo a ver com esse prazer.
Saber consciente e saber reprimido
O intenso interesse do espectador pela ironia dramática pode,
porém, ter causa diferente. Em alguns dos exemplos citados, fica
evidente que a ignorância da vítima é consciente.
O que dizer, entretanto, sobre o nível do inconsciente? Se Nora
(Casa de bonecas) não se dá conta de ser
maltratada pelo marido, talvez seja por, no fundo, isso lhe interessar
e ela preferir, por enquanto, não ter de agir a esse respeito.
Se Norma Desmond (Gloria Swanson em Crepúsculo dos deuses)
ignora o fato de não mais ser uma diva, é provavelmente
porque sabê-lo lhe seria doloroso demais. Quanto a Édipo
(Édipo rei), certamente reprime verdades muito
insuportáveis para ele.
O fenômeno é, sem dúvida, idêntico no mundo
concreto. A fronteira entre o que sabemos conscientemente e o que intuímos
ou sentimos é, com frequência, imperceptível. Em
alguns dos exemplos citados, a palavra "ignorar" pode ser
forte demais. A vítima da ironia dramática, em muitos
casos, não ignora, prefere antes ignorar ou se recusa a acreditar
- pode, aliás, suspeitar daquilo que nós, espectadores,
já sabemos. Talvez por isso, cônjuges traídos, tanto
na vida como nas peças de boulevard, sejam sempre os últimos
"a saber".
Em consequência disso, explorar uma ironia dramática consiste,
muitas vezes, em colocar em cena toda a energia que o inconsciente humano
gasta tentando evitar que o consciente admita algumas verdades por demais
cruéis. Assim sendo, a ironia dramática daria conta, com
mais precisão e profundidade, da psicologia dos personagens.
Ainda aqui, é fácil imaginar o prazer do espectador ao
perceber nos outros o que ele vivencia cotidianamente, ainda que sem
se dar conta.
Além de Crepúsculo dos deuses, Casa
de bonecas e Édipo rei, outras três
obras ilustram com perfeição essa oposição
entre saber consciente e saber reprimido: Morte de um caixeiro
viajante - do qual o primeiro título de trabalho era
algo como "Por dentro de sua cabeça" -, Mentira
e A festa (1998). Na peça de Arthur Miller, Willy
Loman recusa a verdade porque ela é penosa demais, mas sentimos
que ele se aproxima da lucidez, dando até a impressão
de tê-la compreendido. É o que faz da peça obra
tão rica, profunda e fascinante. No filme dirigido por Hitchcock,
sabemos que Charlie (Joseph Cotten) é assassino procurado pela
polícia; sua família o ignora. E, no entanto, a sobrinha
(Teresa Wright) suspeita de algo e, aos poucos, sua intuição
se transforma em certeza. Todo o segundo ato descreve o processo dessa
revelação. Finalmente, em A festa (1998),
pensamos que Christian (Ulrich Thomsen) diz a verdade quando acusa seu
pai de abuso sexual. Atenção: nenhuma prova formal nos
é oferecida, além da força dramática que
nos impulsiona inconscientemente a identificar-nos com o personagem
em conflito. Ora, a maioria dos convidados dessa festa de família
não acredita em Christian: alguns nada sabem; outros reprimem
o que inconscientemente já sabem; outros ainda (o pai e a mãe)
mentem. Todos, porém, de uma maneira ou de outra, preferem não
encarar a intolerável verdade.
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SEGUNDO EXCERTO DO CAPÍTULO
8:
IRONIA DRAMÁTICA
NB: para a definição
de ironia dramática cf. o extracto de léxico abaixo.
A IRONIA DRAMÁTICA DIFUSA
Imaginemos agora uma cena bem simples, quase banal, em que o personagem
empresta seu carro ao vizinho que promete tomar muito cuidado. Imediatamente,
nós, espectadores, compreendemos que ele não tomará
cuidado e acabará por destruir o carro do amigo. Não sabemos
exatamente o que acontecerá com ele, é verdade; mas, exatamente
por estarmos no cinema, no teatro ou na história em quadrinhos,
percebemos algo, do nosso lugar de espectador, que os personagens não
podem perceber. Isso é ironia dramática. E se aquele que
toma o carro emprestado é o Bucha e Estica, Jerry Lewis, inspetor
Clouseau, Gaston Lagaffe ou detetive Palmer, o princípio permanecerá
o mesmo, só se intensificando a ironia dramática.
Imaginemos uma segunda cena: quatro "trintões" resolvem
fazer um passeio de caiaque no rio. Ao colocar o barco na água,
imaginam que, salvo por alguns espirros de água, a aventura será
tranquila. É assim que começa Fim de semana alucinante.
Adivinhamos que o final de semana não será tão
tranquilo assim, ou seja, de uma certa maneira, "sabemos"
algo que os personagens ignoram. Isso também é ironia
dramática.
Passemos agora a dois mendigos esperando alguém na beira de uma
estrada. A noite chega com a notícia de que aquele que eles esperam
não chegará. No dia seguinte, os dois mendigos começam
novamente a aguardar. Curiosamente, tudo acontece exatamente como na
véspera, e aos poucos compreendemos algo que os dois mendigos
parecem não compreender: que aquele que eles esperam nunca virá
(cf. À espera de Godot).
Uma adolescente muito problemática, cujos pais são descritos
como severos e puritanos. Internada em hospital psiquiátrico,
a menina é diagnosticada como esquizofrênica. Médicos
e pais se dividem quanto à origem do mal: um vírus ou
o diabo. Ainda que David Mercer (roteirista de Vida em família)
não se pronuncie claramente sobre o assunto, adivinhamos: são
os pais da adolescente os responsáveis do seu estado.
Um comerciante veneziano - Antônio - pede três mil ducados
emprestados a um agiota - Shylock - que o detesta e que propõe
e seguinte negócio: se, no dia estabelecido, Antônio não
pagar sua dívida, Shylock poderá se ressarcir extraindo
de Antônio uma libra de sua própria carne. Antônio
aceita as condições do empréstimo, certo de poder
reembolsá-lo na data prevista - muito mais otimista, portanto,
do que o espectador ao final do primeiro ato de O mercador de
Veneza.
Por fim, imaginemos uma estação balneária aterrorizada
por um tubarão assassino. Os pescadores da região partem
à caça e retornam com um tubarão-tigre de três
metros amarrado pelo rabo. Todos na cidade ficam satisfeitos. Nós,
espectadores, entretanto, desconfiamos de que não se trata do
tubarão assassino. E o que sabemos com certeza é que o
filme Tubarão começou há apenas 40
minutos. A conclusão é simples.
O distanciamento do espectador
Poderíamos multiplicar os exemplos infinitamente. O princípio
é sempre idêntico: seja qual for a situação,
seja qual for a cena, o espectador pressente o pior - os cínicos
e pessimistas dirão que "esperam" o pior - e se prepara
para o que houver de mais conflituoso, interpretando informações
que o protagonista (local ou geral) não é capaz de interpretar.
Não se trata da ironia dramática apresentada até
agora, pois o espectador não recebe informação
suplementar, em relação ao personagem (à exceção,
talvez, de se saber dentro de um filme, coisa que os personagens, em
geral, ignoram). Seria uma forma mais sutil de ironia dramática,
mais indefinida, que denominaremos "difusa".
Essa ironia dramática difusa é própria da posição
de espectador, que se sabe sentado em uma sala escura, para assistir
às desventuras dos personagens que se agitam em cena ou na tela.
Esse saber lhe confere um recuo, ampliando a capacidade de medir o alcance
do que acontece com os personagens, de ser mais lúcido do que
eles.
Estaríamos errados em pensar que a ironia dramática difusa
também tem como origem a cultura do espectador. É verdade
que, hoje, muitos espectadores são iniciados, eles conhecem os
segredos, às vezes até de forma consciente. Mas o distanciamento
do espectador em relação à uma narrativa é
velho como o mundo. Na China, há 3.000 anos, uma criança
que ouvia um conto de fadas já era mais clarividente que os personagens
do conto em muitos níveis.
Todas as obras dramáticas, sem exceção, contêm
ironia dramática difusa. As aplicações são
as mais variadas, a começar pela ironia dramática propriamente
dita, que não se encontrar em tantas obras por acaso. Ela própria
não passa de uma forma de exploração da ironia
dramática difusa.
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EXCERTO DO CAPÍTULO 9: COMÉDIA
Um tratamento menosprezado
Apesar de sua grandeza e utilidade, a comédia
é ainda frequentemente alvo de desvalorização.
É fato que, como pondera Gilles Lipovetsky [109] em A era
do vazio, rir tornou-se imperativo social generalizado nas nações
ocidentais. A irrisão, a paródia e a zombaria são
onipresentes (muitas vezes acompanhadas de agressividade). Na televisão,
tornou-se obsessão. Infelizmente, esse fenômeno resultou
em uma tendência a vulgarizar a comédia, em vez de enobrecê-la.
Apesar de Aristófanes, Molière, Chaplin, Lubitsch, A
fera amansada ou O mercador de Veneza, ainda temos
dificuldade em pensar que humor e arte possam formar bom par. "Rimos
do começo ao fim, mas é só isso" é
um dos mais clássicos (e mais trágicos) comentários
da crítica. Ao passo que, quanto mais hermética uma obra
séria, mais celebrada será, tratada de difícil,
frágil ou ambiciosa, ainda que seja simplesmente um tiro pela
culatra. É como esquecer algo fundamental: se é engraçado,
é justo. A comédia e, a fortiori, a boa comédia
é sempre um comentário pertinente e bem sucedido sobre
a natureza humana. Uma comédia fracassada não tem desculpas
- e, no entanto, um comédia também pode ser frágil.
Oscars, césars e outras palmas de ouro raramente recompensam
comédias. Gérard Depardieu foi nomeado por seu papel de
palhaço branco (o palhaço sério) em Os compadres,
mas não Pierre Richard, o palhaço augusto, que, no entanto,
fez um trabalho formidável. Os atores ditos "cômicos"
devem aguardar convite para atuar em um filme sério, antes de
ser notados. Pensemos em Michel Galabru em O juiz e o assassino,
Dan Aykroyd em Miss Daisy ou Coluche em Tchao Pantin.
Ora, eles já se encontravam no auge de suas carreiras (e de suas
artes) em Adorável gozador, O dueto da corda
ou O inspetor Cabeçada. Para esses fenômenos,
podemos propor algumas causas.
1. A comédia, como acabamos de ver, é um atentado à
vaidade humana, trazendo-nos sempre de volta a nossa condição
terrestre. Encena os entraves do inconsciente, enquanto a tragédia
e o drama sério atribuem ao ser humano importância que
ele talvez não tenha, mas que o envaidece, seja na condição
de autor, crítico ou espectador.
2. Falta-nos distanciamento. O olhar que cada um de nós pousa
sobre a própria existência é impregnado de lamentação,
mais do que de ironia. Estamos prontos a considerar nossas vidas trágicas
ou melodramáticas, eventualmente alegres - quando não
há conflito -, mas raramente cômicas. E isso é tanto
mais verdadeiro quanto mais próximo. Assim, obras que mostram
situações terríveis temperadas com um pouco de
humor e são acusadas de levianas: Inferno na Terra,
por exemplo, cuja história se passa em um campo de prisioneiros
alemão. O filme foi condenado injustamente e só redimido
pelos depoimentos de ex-prisioneiros relatando que as piadas e farsas
eram, sim, parte integrante do quotidiano dos campos, tentativa talvez
de escapar à loucura.
3. A comédia é democrática - uma boa piada é
capaz de reunir filósofo e camponês, jovem e velho, crente
e ateu. É também anti-elitista e, como tal, frustra os
que almejam o poder (seja ele intelectual, religioso ou político),
principalmente os que gostam de estabelecer hierarquias. Com eles no
topo, é claro. Além disso, por ser popular, é comercial,
o que, para alguns, implica incompatibilidade com arte.
4. Ainda que a leveza da comédia deixe suspeitar facilidade em
sua escritura, ela é, de todos os tratamentos, o que demanda
mais competências. Só o resultado é leve, e não
o (árduo) trabalho e o talento exigidos para a obtenção
dessa leveza. A comédia é de delicada manipulação,
exige técnica, e fazer rir é muito mais difícil
do que atingir um tom sério. Em A crítica à
Escola de mulheres, Molière coloca na boca de Dorante:
"Penso que é muito mais fácil pendurar-se em grandes
sentimentos, gritar contra a sorte e acusar o destino, insultar os deuses,
do que penetrar decentemente o ridículo dos homens e colocar
agradavelmente em cena os defeitos de todo mundo." E Mario
Monicelli [119] vem confirmar: "Fazer um filme dramático
me é muito mais fácil do que uma comédia".
Bem como François Truffaut [183]: "Qualquer um que se
tenha aproximada da escritura de roteiro sabe que a comédia é
o gênero mais difícil de escrever, aquele que exige o máximo
de trabalho, de talento e de humildade também."
Como corolário, existem muito mais dramas do que comédias,
e ainda menos comédias bem-sucedidas do que dramas bem sucedidos.
No cinema, a comédia é representada por um pequeno número
de filmes, o que a faz ser assimilada como gênero, dividindo espaço
com o faroeste, o policial ou a "comédia" musical (cf.
páginas 80-81). Hawks [74] declara que a coisa mais difícil
no mundo é por as mãos em uma história engraçada.
5. E se o palhaço fosse menosprezado tanto por ditadores, igrejas
ou certos intelectuais pela simples razão de ser o ser humano
mais lúcido em relação à vida, o mais inteligente,
aquele que vê com clareza através do jogo das relações
humanas e que joga luz sobre as falhas dos poderosos? O desprezo do
qual o palhaço é alvo poderia então ser visto como
medo ou ódio. Talvez fosse com o intuito de contrabalançar
essa insuportável perspicácia que os príncipes
escolhiam bufões feios ou deformados.
Contudo, cabe notar que, em relação à comédia,
o desprezo é originado entre os formadores de opinião
(críticos e profissionais), e não em meio ao público.
Na França, os maiores sucessos do cinema se encontram tanto entre
as comédias (Bem-vindo ao Norte, Que o diabo
seja surdo, O trouxa, O jantar de palermas,
A grande paródia, A guerra dos botões,
Três homens e um berço, A vaca e o
prisioneiro, Os visitantes, etc.) quanto nos filmes
de aventura (Ben-Hur, Aconteceu no Oeste,
O dia mais longo, A ponte do rio Kwai, etc.).
Para não rir de sua vida, o espectador vai ao cinema ou ao teatro
para rir da vida alheia. Cabe notar que as estatísticas americanas
revelam algo diferente: nos Estados Unidos são os contos de fada
modernos que encabeçam as listas de sucesso de bilheteria (Batman,
Tubarão, E.T., o extra-terrestre,
Guerra das estrelas, Harry Potter, Parque
Jurássico, O senhor dos anéis,
Titanic, etc.). Isso talvez denote uma diferença
de mentalidade entre os dois povos. A respeito de cinema americano,
Pauline Kael [92] escreve que "a indústria do cinema,
por medo, sempre glorificou em seus filmes a idéia da coragem".
Em Bowling for Columbine, Michael Moore desenvolve a idéia
de que a cultura de massa americana é fundada sobre o medo. Alguns
acrescentam que a celulite e as armas de fogo são um meio de
exorcizá-lo. Existe, porém, uma terceira maneira: os contos
de fadas modernos.
A história nada revela, mas eu apostaria que a mulher que animava
seu teatro de pão no campo de extermínio de Stutthof (cf.
página 11) se empenhava em fazer seus espectadores rirem.
Um tratamento terapêutico
Que a verdade seja dita: o riso é útil
ao ser humano, sobre o qual tem efeito curativo. Em seu artigo O
humor [61], Freud explica que a atitude humorística é
uma recusa à dor, uma proclamação de invencibilidade
do eu, uma afirmação do princípio do prazer, que
tem o grande mérito de não nos permitir sair do terreno
da saúde psíquica, ao contrário de outros meios
de defesa contra a dor, como a neurose, a loucura, o êxtase ou
o isolamento em si. Segundo Boris Cyrulnik [40], "o humor é
um precioso fator de resiliência".
Diversas pesquisas colocam em evidência a ação do
riso sobre a saúde mental e física, diminuição
do estresse, aumento da longevidade, fortalecimento do sistema imunitário.
Nos anos 60, num jornalista americano, Norman Cousins [38], foi diagnosticada
uma forma grave de espondilite anquilosante. Um dia, após assistir
a um filme que o fez rir, ele se deu conta do desaparecimento de sua
dor, e decidiu, então, tratar-se pelo riso, assistindo a comédias,
diariamente, lendo histórias engraçadas, se divertindo
de todas as maneiras, e assim se curou. Essa história não
é uma piada. Nos dias de hoje, muitos palhaços trabalham
em hospitais com crianças doentes praticando a chamada geloterapia,
a terapia pelo riso.
A comédia tem outra característica psicossomática:
ela desconecta o hemisfério esquerdo e abaixa a guarda do receptor,
contornando seu mental. O humor é como uma espécie de
hipnose ericksoniana. Devido a essas capacidades ele é utilizado
em psicoterapia ou no ensino budista, quando é muito útil
para repassar a profundidade do conteúdo de sua mensagem. Um
espectador que ri torna-se mais receptivo e compreende melhor o que
é dito. Danis Tanovic [171] relata que, depois da acolhida de
seu curta-metragem L'aube - que nada tem de realmente
engraçado - ele compreendeu que deveria ter colocado humor em
Terra de ninguém para que o público pudesse
entender o que ele queria dizer sobre a guerra. Discurso equivalente
é o de Hiner Saleem que, para divulgar a causa curda, optou pela
comédia (Viva a noiva... e a libertação do
Curdistão), em vez de fazer um filme engajado e grave
como teriam desejados alguns grupos do Curdistão.
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EXCERTO DO CAPÍTULO 10: DESENVOLVIMENTO
Aristóteles e o repolho romanesco
A estrutura de uma obra narrativa é, de fato,
o que o matemático francês Benoît Mandelbrot [111]
chama de conjunto fractal. O princípio da teoria fractal, criada
em 1974, é simples: formas que, a priori, podem parecer caóticas
ou desordenadas são, na verdade, quase sempre fundadas sobre
estrutura simples que se reproduz em múltiplas esferas - sendo
infinito o número de esferas, ou seja, o padrão é
o mesmo, olhando-se de perto ou à distância. O repolho
romanesco oferece exemplo evidente e espetacular. O princípio,
porém, se aplica a todos os tipos de conjunto, em todas as matérias:
nuvens, neve, os brônquios, um raio, as costas da Bretanha, a
distribuição das galáxias, algumas partituras de
Bach, etc.
Vimos que o terceiro ato de uma obra dramática pode conter, como
o todo do qual faz parte, seu próprio incidente desencadeador,
que chamamos de golpe de surpresa, e seu próprio clímax.
Dessa maneira, a estrutura simples que compreende três atos, um
crescendo e um clímax existe em todos os níveis, desde
uma frase de diálogo e até a totalidade da obra; é
igualmente encontrada nas séries. Em Thorgal, a
questão dramática do conjunto dos álbuns é:
Thorgal e sua família conseguirão encontrar um lugar para
viver em paz? Friends propõe um questão
dramática que corre ao longo das 10 temporadas da série:
Ross (David Schwimmer) e Rachel (Jennifer Aniston) terminarão
juntos? Os 114 episódios do seriado The odd couple
se apóiam em uma única questão dramática
de conjunto: nosso casal divorciado (Jack Klugman, Tony Randall) conseguirão
viver sob o mesmo teto sem se enlouquecerem mutuamente? Em Battlestar
Galactica, o objetivo dos protagonistas é encontrar a
Terra para viverem em paz. O seriado usa até a estrutura modificada
sobre o conjunto de 73 episódios das quatro temporadas. O clímax
geral acontece no 63º episódio (temporada 4, episódio
10). E a ação é relançada no 64º episódio
com um clímax de terceiro ato nos dois últimos episódios.
Podemos até ultrapassar o limite da obra dramática (ou
da série) e considerar que na vida inteira do protagonista -
que a obra só relata em parte -, encontraremos a mesma estrutura.
Podemos ainda passar a escala superior à da vida de um indivíduo,
aquela de sua família, de sua cidade, de seu povo, etc., e chegar
à mais importante escala hoje conhecida, que é a do universo.
O Big Bang torna-se o incidente desencadeador de uma narrativa inacabada.
Desconhecemos a resposta dramática e ainda menos o terceiro ato.
Suspense... Isso dito, alguns religiosos não suportam essa insipiência
e predizem um clímax: o apocalipse.
Dessa maneira, a vida de um ser humano é um conjunto tão
fractal quanto a do personagem de ficção, tal como apresentado
em uma obra dramática.
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EXCERTO DO CAPÍTULO 13: DIÁLOGO
Os diálogos-pagamentos
Aos auto-suficientes diálogos de citações, que
dispensam outra função que a de pavonear seu sortilégio,
eu prefiro os diálogos-pagamentos, que necessitam do contexto
para que todo o seu sentido aflore. E isso talvez nos ajude a definir
um bom diálogo. Para convencer-se, basta tomar o diálogo
mais célebre do repertório, "Ser ou não
ser", e tentar colocá-lo em diferentes contextos. Dependendo
de quem o diga - Hamlet, no começo do célebre monólogo
(Hamlet, III/1); um pedestre na rua; ou o ponto no teatro
(Adolf Licho) em Ser ou não ser -, fica claro que
ele não tem o mesmo alcance.
Outro exemplo, o bife de Shylock em O mercador de Veneza
(III/1): "Por eu ser judeu. Os judeus não têm olhos?
Os judeus não têm mãos, órgãos, dimensões,
sentidos, inclinações, paixões? (
) Se nos
espetardes, não sangramos? Se nos fizerdes cócegas, não
rimos? Se nos derdes veneno, não morremos?". De fato,
esse diálogo se basta, dispensando injunções. Seria
interessante, no entanto, notar que o contexto de O mercador de
Veneza lhe oferece um sentido particular. Não se trata
da réplica de um judeu diante de seus algozes - como estaríamos
tentados a crer -, mas sim a de um judeu ressentido pela fuga de sua
filha, e que tenta justificar seu desejo de revanche em relação
a Antonio ("E se nos ofenderdes, não nos devemos vingar?").
Em outros termos, Shylock não está dizendo a Antonio:
"Pare de me maltratar, sou humano como você", mas "Fui
por você menosprezado, estou ferido como qualquer outro ser humano,
e você vai me pagar caro pelo que fez". Lubitsch e seus co-roteiristas
darão a essa tirada outro sentido mudando seu contexto em Ser
ou não ser.
Exemplos de diálogos-pagamentos
Dessa maneira, certos diálogos, de absoluta
falta de interesse fora de seu contexto, tornam-se particularmente saborosos
quando assistimos ao que lhes precede ou envolve. Eis aqui alguns exemplos.
No final de O mercador de Veneza (V/1), Portia pede a
Bassânio, seu marido, o precioso anel que ela lhe dera. Ora, sabemos
que Bassânio o ofereceu ao advogado, em agradecimento a sua excepcional
ajuda. Sabemos também que o tal advogado era a própria
Portia disfarçada, sendo, portanto, ela quem possui o anel. Bassânio
se afoga em mentiras para se desculpar. Portia termina por estender-lhe
a jóia, dizendo: "Que seja mais zeloso".
Em La main passe (II/4), Francine é surpreendida
por seu marido numa cama que não é a sua. Com seu ar mais
ingênuo, ela diz: "Quê?... Quê?... O que você
vai imaginar desta vez?".
Em Eu sou um evadido, James Allen (Paul Muni) é
considerado criminoso pela polícia e pela justiça, ainda
que seja totalmente inocente. Vítima das piores injustiças,
preso várias vezes, acaba foragido. Ele tenta então rever
a mulher que ama (Helen Vinson) para lhe dizer adeus. É o final
do filme. Ela lhe pergunta como ele consegue sobreviver. "Eu
roubo".
Em Ninotchka, Ninotchka (Greta Garbo), austera comissária
soviética, vem a Paris em missão. Ela é recebida
por três camaradas (Sig Ruman, Felix Bressart, Alexander Granach),
já corrompidos pelo hedonismo capitalista parisiense. Os quatro
se encontram na suíte real de um grande hotel e pedem cigarros
ao serviço de quarto. Chegam então três vendedoras,
jovens e animadas, vestidas como call-girls. Elas se imobilizam ao ver
Ninotchka, enquanto os três camaradas abaixam a cabeça,
envergonhados. Ninotchka diz: "Camaradas, vocês devem
estar fumando muito."
Em O grande ditador, Hynkel (Charles Chaplin) acaba de
dançar com a mulher de Napaloni (Grace Hayle), a quem, por delicadeza
poderíamos dizer, falta graça. Ela a felicita: "Sua
maneira de dançar, Madame, estava magnífica... excelente...
muito boa... boa!".
Em Humulus, o mudo, Humulus pode pronunciar, por dia,
uma única palavra, e decide economizá-las durante um mês
para poder declarar seu amor a sua eleita. Chega enfim o dia D. Humulus
faz sua declaração. A bela exibe então um aparelho
auditivo e pede: "Pode repetir, por favor?".
Ao final de Quanto mais quente melhor, Jerry (Jack Lemmon)
deseja realmente que Osgood (Joe Brown), que pensa que ele é
uma mulher, pare de fazer-lhe a corte. Ele tenta todos os tipos de argumento,
mas em vão. Desesperado, decide então confessar sua identidade
sexual. Osgood, nada surpreso, lança então o lendário:
"Ninguém é perfeito".
Ao final de Spartacus (1960), o exército de escravos
comandado por Spartacus (Kirk Douglas) é vencido pelos soldados
de Crassus (Laurence Olivier). Os sobreviventes são feitos prisioneiros.
Lhes é prometido escapar à crucificação
se entregarem o corpo, vivo ou morto, de seu líder. Spartacus
vai render-se quando Antoninus (Tony Curtis) se levanta e grita: "Sou
Spartacus!". Logo, outro prisioneiro faz a mesma coisa. E um
terceiro. Rapidamente, todos os escravos gritam em coro "Sou
Spartacus!".
Em Astérix legionário, Obélix é
apresentado a Falbala, por quem está apaixonado. Ele estende
a mão e diz: "Wkrstksft".
Ao final de Perigo na noite, o protagonista (Jon Finch)
é surpreendido pelo inspetor Oxford (Alec McCowen) ao lado do
cadáver de uma moça recém-estrangulada por uma
gravata. Ele é, novamente, pego em situação comprometedora.
De repente, os dois homens ouvem um ruído. Rusk (Barry Foster),
o verdadeiro assassino, chega com uma mala. "M. Rusk, o senhor
está sem gravata", observa o inspetor. Corta. Créditos
de fim.
Em Fuja enquanto e tempo, Milan (Lino Ventura) é
um assassino profissional e deve, da janela do seu hotel, executar um
homem. O problema é seu vizinho da quarto, Pignon (Jacques Brel),
um pobre-diabo que, graças a uma tentativa frustrada de suicídio,
ameaça o sucesso de sua missão. O camareiro (Nino Castelnuovo)
está prestes a chamar a polícia por causa dele. Milan
chama o camareiro e, de forma totalmente glacial - graças sejam
dadas ao Lino Ventura -, diz: "O que ele precisa... é
de um pouco de calor humano. Deixa comigo".
No final de Viva papa!, Achile Talon é abraçado
"calorosamente" por uma bela nativa. Constrangido pela ousada
cena, Fonske declara: "Bem... como a esquerda do céu
está a oeste, hoje...".
No final de Que o diabo seja surdo, Perrin (Pierre Richard)
já aprontou várias com o detetive particular Campana (Gérard
Depardieu). De repente, ele vê uma serpente aproximar-se da perna
de Campana. Diz-lhe para não se mexer, aponta sua arma e atira.
A bala atravessa a perna de Campana, que suspira e confessa: "Eu
tinha uma vida um tanto sem graça antes de encontrá-lo,
Perrin".
Em o filme Papai Noel é um picareta, Thérèse
(Anémone) oferece a Pierre (Thierry Lhermite), como presente
de natal, uma espécie de malha de fabricação artesanal.
Pierre comenta: "Oh... puxa Thérèse, um pano de
chão, que idéia genial!". No mesmo filme, Pierre
critica Félix (Gérard Jugnot) por resolver seus problemas
conjugais de maneira brutal. Ele, Pierre, não tem o hábito
de se entender a golpes de ferro de passar. Félix responde: "Isso
é porque você não é um homem doméstico".
Esse exemplo mostra que um diálogo-pagamento pode ser tanto o
pagamento de uma série de diálogos quanto o de uma situação.
No final de Memento, que relata de trás para a
frente a aventura de um homem sofrendo de perda de memória imediata,
o protagonista (Guy Pearce) diz: "Bem, onde eu estava?".
É a última réplica do filme.
A cena de tradução de A vida é bela
citada na página 318 contém vários maravilhosos
exemplos de diálogo-pagamento.
Cabe notar que esse tipo de diálogo se assemelha aos dos desenhos
humorísticos, em que o diálogo é quase sempre banal.
É a defasagem que ele cria com o desenho que dá ao conjunto
sua graça. Como, aliás, sempre olhamos o desenho antes
de ler o diálogo, podemos considerar este último como
um diálogo-pagamento. Sempé é um dos mestres nesse
domínio.
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EXCERTO DO LÉXICO
Ironia dramática (dramatic irony): procedimento que consiste
em dar ao espectador informação que ao menos um dos personagens
ignora (conscientemente), privilegiando, portanto, o espectador em relação
a um (ou mais) personagem(ns). A ironia dramática é trabalhada
em três etapas: instalação, exploração
e resolução. A ironia dramática formula-se da seguinte
maneira: "Nós sabemos que isso-ou-aquilo; tal personagem,
porém, o ignora". 32, 79, 159, 196, 197, 199, 208, 289-346,
360, 371, 384, 393, 394, 411, 433, 445, 446, 453-455, 469-471, 500
Ironia dramática difusa: ironia dramática na qual
o espectador pressente - em vez de saber - algo que os personagens ignoram.
A ironia dramática difusa é consequência do recuo
natural que todo espectador tem sobre os personagens da obra dramática.
A ironia dramática difusa formula-se da seguinte maneira: "Nós
pressentimos que isso-ou-aquilo; tal personagem nem desconfia".
328-332, 346, 347, 360-361, 365, 393, 394, 433, 454
Legenda: tradução aproximada dos diálogos,
impressa sobre a imagem nas cópias em versões originais
dos filmes estrangeiros. 427-428
Literatura: tudo o que é escrito para ser lido (em voz
alta ou silenciosamente) e não visto ou ouvido. Cf. Dramaturgia
e Exposição. 24, 31, 34, 118, 256, 343, 387-389, 400,
478-485, 496
MacGuffin: no stricto sensu hitchcockiano, o MacGuffin é
o segredo que motiva os vilões (raramente os protagonistas) e
desnecessário de comunicar ao espectador; lato sensu, toda justificação
das premissas conflituosas externas da obra. Essa justificação
é, na maioria das vezes, irrelevante, posto que as motivações
do protagonista constituem o que interessa ao espectador, e não
aquelas fundadoras de obstáculos externos. 86-88, 239,
244, 461
Marcador (main marker): nódulo dramático importante
do segundo ato que, em geral, começa ou conclui a sequência.
Cf. Clímax mediano. 382-385
Meio: procedimento usado pelo protagonista (local ou geral)
para atingir seu objetivo. Quando difícil de atingir, torna-se
subobjetivo; se mal escolhido, faz parte dos obstáculos internos.
65-67, 121, 175, 327, 384, 460
Melodrama: gênero dramático caracterizado pelo
acúmulo de obstáculos externos e, em particular, as injustiças
da vida e os azares infelizes. A passividade frente a este tipo de obstáculo
reforça a sensação de melodrama. 34, 77-80,
99, 131, 290, 290-293, 376, 446, 495
Mid-act climax: cf. Clímax mediano.
Milking: anglicismo (ordenha em português) designando
o procedimento que consiste em explorar ao máximo um elemento
(cenário, personagem, situação, etc.), tirando
dele toda significação possível para fazer avançar
a ação. Sinônimo de exploração exponencial
e forma de criatividade. Cf. Tricô. 23, 278-286, 301, 370,
453, 467-468, 509, 516
Mistério: procedimento que consiste em fazer o espectador
saber que ele ignora uma ou várias informações,
criando curiosidade intelectual. A resolução de um mistério
é um esclarecimento. 240, 319, 337-346, 426, 455, 471,
508
Momento de escolha: nódulo dramático ao longo
do qual um dos personagens, geralmente o protagonista, é levado
a tomar uma decisão capital para ele ou para a ação.
Coincide às vezes com o clímax ou o ponto de não-retorno.
168, 189-190
Mosaico (narrativa): narrativa que se interessa a diversos protagonistas
(cada um tendo seu próprio objetivo) e misturando suas intrigas.
225
Motivação: o que anima o personagem e justifica
suas ações. Pode ser emoção ou objetivo,
consciente ou não (em função do efeito boneca russa
pretendido). A motivação é noção
importante, vinculada ao trabalho de caracterização, mas
também catalizadora da participação do espectador.
63-65, 121
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